Saturday, August 21, 2010

Jogo duro: mecanismos genéticos da cooperação

A existência de comportamentos cooperativos na natureza é uma questão que há séculos desafia a curiosidade de cientistas, pois se apenas o indivíduo mais adaptado (não o mais forte) sobrevive, genes que estejam relacionados com a cooperação deveriam conferir desvantagem, sendo então eliminados da natureza ao longo das gerações. Um grupo do Massachusetts Institute of Technology (MIT), publicou ano passado um artigo importante mostrando bases genéticas que explicam a vantagem evolutiva da cooperação.

O grupo utilizou a levedura Saccharomyces cerevisiae como modelo, dada a facilidade de manipulação genética e crescimento em laboratório. A levedura consome preferencialmente glicose, que pode ser capturada diretamente do ambiente. Na ausência de glicose, sacarose pode ser usada. No entanto, a sacarose não pode ser absorvida diretamente e a levedura precisa secretar uma enzima chamada invertase, que quebra a sacarose em glicose e frutose, que são então absorvidos. Como tal processo ocorre fora da célula, uma levedura mais "esperta" poderia tirar vantagem do processo e absorver glicose sem produzir invertase - uma forma de trapaça que pode conferir vantagens significativas e até mesmo extinguir as leveduras que produzem invertase caso toda a glicose produzida se dilua no ambiente.

Os experimentos iniciais mostraram que os cooperadores têm acesso preferencial a 1% da glicose gerada pelo seu trabalho, sendo o restante diluído no ambiente, podendo ser usado por trapaceiros. A ideia do grupo foi então colocar uma população cooperadora (produzindo invertase) para competir com outra trapaceira (não produtora de invertase). Como esperado, os autores observaram que uma pequena fração de trapaceiros pode invadir a população de cooperadores. Surpreendentemente, o oposto também ocorre, pois aquele 1% de glicose que os cooperadores conseguem garantir lhes confere uma vantagem significativa num meio dominado por trapaceiros. Em resumo, sempre é alcançado um equilíbrio entre trapaceiros e cooperadores. Além disso, tal equilíbrio é independente da fração inicial de cooperadores.

O grupo elaborou mais um experimento elegante, modificando geneticamente os cooperadores de maneira que seu crescimento dependa da absorção do aminoácido histidina. Assim, o custo da cooperação pode ser controlado a partir da quantidade de histidina fornecida. Por exemplo, quanto menos histidina fornecida, mais cara é a cooperação. Os pesquisadores descobriram então que quanto maior o custo da cooperação, menor a fração de cooperadores e menor o crescimento de todos, pois os trapaceiros dependem do trabalho dos cooperadores para obter glicose.



O estudo de tal equilíbrio é muito interessante, pois muita glicose no ambiente repleto de cooperadores favorece fortemente a invasão de trapaceiros. Se a glicose é fornecida de forma constante, os cooperadores podem ser até mesmo levados a extinção. Neste caso em particular, a co-existência entre trapaceiros e cooperadores também parece ocorrer na natureza, onde populações com diferentes números de cópias do gene da invertase podem co-existir. Os resultados podem ser explicados pela teoria dos jogos, ramo da matemática que estuda situações estratégicas onde os jogadores tentam maximizar seu retorno. Mais especificamente, o caso do equilíbrio entre leveduras cooperadoras e trapaceiras é melhor acomodado pelo jogo do monte de neve (snowdrift game), em que dois motoristas estão parados em frente a um monte de neve. Neste jogo, a melhor decisão é sempre a oposta do outro. Se o motorista A limpar a estrada, o melhor que o motorista B pode fazer é ficar no carro. O pior cenário possível é se ninguém sair para retirar a neve.

A levedura é um ótimo modelo para estudar as bases genéticas da cooperação, pois as decisões são tomadas com base na genética em resposta ao ambiente (ao contrário dos humanos, onde decisões são influenciadas decisivamente por pensamentos e emoções). O estudo abre ainda a possibilidade de estudar outras situações que podem envolver o equilíbrio entre trapaceiros e cooperadores, como por exemplo na degradação de amido. Seria ainda interessante buscar modelos que permitam estudos similares em espécies multicelulares.

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Referência e figura:
Gore J, Youk H, van Oudenaarden A. Snowdrift game dynamics and facultative cheating in yeast. Nature. 2009; 459(7244):253-6. PMID: 19349960; PMCID: PMC2888597; doi: 10.1038/nature07921

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